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quinta-feira, 27 de março de 2008

Até onde ir sem perder o encanto e o mistério?

Este talvez seja o maior desafio da vida a dois: nunca se deixar decifrar totalmente pelo outro. Fechar a porta em alguns momentos para não expor o corpo e a alma em toda e qualquer situação. Há sempre a necessidade de discutir o delicado equilíbrio entre partilhar e se resguardar.
Viver uma vida a dois é como brincar de amarelinha. O céu e o inferno moram perto, e você tem que tomar muito cuidado para não estacionar o pezinho na casa errada e voltar ao começo do jogo. Afinal de contas, como é que se faz para manter o mistério quando a gente dorme e acorda na mesma cama, quando o namoro vem tão firme que, na casa dos seus pais, ele tem lugar certo à mesa e participa do amigo-secreto natalino?
O "até que a morte nos separe" não é exatamente um caminho sem sustos e desgostos. Somos e seremos um pro outro esta matéria impenetrável, constante motivo de assombro, de dor e de alegria.
Uma união estável requer uma boa cota de intimidade, mas é preciso ler a bula antes.
Intimidade demais, aquela intimidade invasiva e triste, nossa! Tem uma lista de contra-indicações para amores de todas as faixas etárias. Aquele cara ao seu lado viu você viver uma série de situações lindas e um punhado de problemões, viu você vestida de noiva e urrando de dor na hora do parto. Viu você tantas vezes que pode, de olhos fechados, resumi-la, descrevê-la, adivinhar a cor do seu esmalte ou o seu medo mais escondido. Isso é uma alegria e um tremendo problema. Queremos sempre alguém que tenha algo de novo, que nos surpreenda e que se surpreenda conosco.
Daí que o tempo é uma montanha - pode impedir que a gente siga em frente, por ser alta demais, íngreme demais, pedregosa demais, ou pode nos levar até o céu, desdobrando lugares aos nossos olhos pasmos e enlevados de vertigem. O sucesso da jornada vem de saber seguir por esse caminho sem pisar no pé do outro. Desistir da montanha pode provar duas coisas: ou não valia a pena e o melhor mesmo é ficar à sua sombra, esperando companhia melhor para a jornada, ou a caminhada rumo ao seu cume não foi bem planejada. Afinal, tudo que é feito a dois requer uns planinhos e coordenadas, acordos simples que se renovam no decorrer da subida.
Os casais escalam a montanha todos os dias. É um trabalhinho lindo e complicado. Dividir casa, comida e roupa lavada. Dividir amor, décimo terceiro, sonhos, garagem e banheiro. Dividir as gavetas daquele closet pequeno demais. Dividir os medos. E as vontades. Você vai primeiro que eu vou depois. Dividir os silêncios. Guardar pequenos segredos. E pensamentos. Ai, como é importante ter seu pequeno manancial de coisas pessoais. Ai, como é importante aceitar o mistério alheio e seus reveses.
Como o Pequeno Príncipe, sempre pode nascer um baobá no nosso planeta e acabar com tudo. A nossa rosa pode morrer de sede e quem sabe, tolos, nem notaremos. Como o planeta é nosso, como a rosa foi plantada a dois, ai, meu Deus, é preciso falar sobre os dois exaustivamente. É preciso prevê-los, reformá-los, colori-los e organizá-los duas vezes por semana.
Aí você se pergunta: mas como é que vai haver mistério neste outro que vive ao toque da minha mão? Como vai haver encanto em cuidar desta mesma rosa, em habitar este planetinha para sempre, esta montanha, esta casa, este contrato de casamento?
Decifrar o nosso amor não é devorá-lo. Temos, que nos moldar uns aos outros, e não nos intrometermos a ponto de não sabermos mais com que pernas, no caso de um contratempo, devemos partir. Cada um com as suas angústias, pernas e segredos.
Como um chef que guarda a sua receita num cofre, guarde também um pouco de si. Não há nada de egoísmo nisso. Guardar é preservar, e quem preserva, tem por muito tempo. Tenha para dar ao seu namorado, marido ou amante. Tenha para os anos. Tenha para quando chegar ao cume da montanha, servir num piquenique com vinho e toalha xadrez. Viver juntos não é viver grudados.
Não há poesia que resista ao outro usando fio dental na nossa frente. Essa máquina que é o corpo humano guarda lá suas pequenas miseriazinhas, e é para isso que existem as portas e as chaves. A mente humana também merece os mesmos segredos. Amar não é dizer tudo, tudinho. Amar é viver neste jogo de erros e acertos, colocando cartas na mesa e escondendo outras. Amar é a dança dos sete véus.
Com o tempo, caem os mistérios. Com mais tempo ainda, caem outras coisas. Não adianta. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. É preciso saber acertar a pedra na casa certa desse jogo de amarelinha. Esconder um pouquinho e, mais ainda, é preciso não dizer tudo o que se sabe do outro. Ninguém quer ser explicado, a gente quer é ser entendida. A gente quer é amar e se sentir amada.

Carla Flávia
25 de setembro de 2006.

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